segunda-feira, 16 de agosto de 2010

peripatético

Numa das empresas em que trabalhei, eu fazia parte de um grupo de treinadores voluntários.
Éramos coordenados pelo chefe de treinamento, o professor Lima, e tínhamos até um lema:
"Para poder ensinar, antes é preciso aprender" (copiado, se bem me recordo, de uma literatura
do Senai). Um dia, nos reunimos para discutir a melhor forma de ministrar um curso para
cerca de 200 funcionários. Estava claro que o método convencional -- botar todo mundo numa
sala -- não iria funcionar, já que o professor insistia na necessidade da interação, impraticável
com um público daquele tamanho. Como sempre acontece nessas reuniões, a imaginação
voou longe do objetivo, até que, lá pelas tantas, uma colega propôs usarmos um trecho do
Sermão da Montanha como tema do evento. E o professor, que até ali estava meio quieto,
respondeu de primeira. Aliás, pensou alto:
-- Jesus era peripatético...
Seguiu-se uma constrangida troca de olhares, mas, antes que o hiato pudesse ser quebrado por
alguém com coragem para retrucar a afronta, dona Dirce, a secretária, interrompeu a reunião
para dizer que o gerente de RH precisava falar urgentemente com o professor. E lá se foi ele,
deixando a sala à vontade para conspirar.
-- Não sei vocês, mas eu achei esse comentário de extremo mau gosto -- disse a Laura.
-- Eu nem diria de mau gosto, Laura. Eu diria ofensivo mesmo -- emendou o Jorge, para
acrescentar que estava chocado, no que foi amparado por um silêncio geral.
-- Talvez o professor não queira misturar religião com treinamento -- ponderou o Sales, que
era o mais ponderado de todos. -- Mas eu até vejo uma razão para isso...
-- Que é isso, Sales? Que razão?
-- Bom, para mim, é óbvio que ele é ateu.
-- Não diga!
-- Digo. Quer dizer, é um direito dele. Mas daí a desrespeitar a religiosidade alheia...
Cheios de fúria, malhamos o professor durante uns dez minutos e, quando já o estávamos
sentenciando à fogueira eterna, ele retornou. Mas nem percebeu a hostilidade. Já entrou
falando:
-- Então, como ia dizendo, podíamos montar várias salas separadas e colocar umas 20 pessoas
em cada uma. É verdade que cada treinador teria de repetir a mesma apresentação várias
vezes, mas... Por que vocês estão me olhando desse jeito?
-- Bom, falando em nome do grupo, professor, essa coisa aí de peripatético, veja bem...
-- Certo! Foi daí que me veio a idéia. Jesus se locomovia para fazer pregações, como os
filósofos também faziam, ao orientar seus discípulos. Mas Jesus foi o Mestre dos Mestres,
portanto a sugestão de usar o Sermão da Montanha foi muito feliz. Teríamos uma bela
mensagem moral e o deslocamento físico... Mas que cara é essa? Peripatético quer dizer "o
que ensina caminhando".
E nós ali, encolhidos de vergonha. Bastaria um de nós ter tido a humildade de confessar que
desconhecia a palavra que o resto concordaria e tudo se resolveria com uma simples ida ao
dicionário. Isto é, para poder ensinar, antes era preciso aprender. Finalmente, aprendemos.
Duas coisas. A primeira é: o fato de todos estarem de acordo não transforma o falso em
verdadeiro. E a segunda é que a sabedoria tende a provocar discórdias. Mas a ignorância é
quase sempre unânime.

terça-feira, 3 de agosto de 2010

A EXECUTIVA QUE FOI PARA O CÉU

Foi tudo muito rápido. A executiva bem-sucedida sentiu uma pontada no peito, vacilou, cambaleou. Deu um gemido e apagou. Quando voltou a abrir os olhos, viu-se diante de um imenso Portal.
Ainda meio zonza, atravessou-o e viu uma miríade de pessoas.Todas vestindo cândidos camisolões e caminhando despreocupadas. Sem entender bem o que estava acontecendo, a executiva bem-sucedida abordou um dos passantes:
- Enfermeiro, eu preciso voltar urgente para o meu escritório, porque tenho um meeting importantíssimo. Aliás, acho que fui trazida para cá por engano, porque meu convênio médico é classe A, e isto aqui está me parecendo mais um pronto-socorro. Onde é que nós estamos?

- No céu.

- No céu?...

- É.

- Tipo assim... o céu, CÉU...! Aquele com querubins voando e coisas do gênero?

- Certamente. Aqui todos vivemos em estado de gozo permanente.

Apesar das óbvias evidências nenhuma poluição, todo mundo sorrindo, ninguém usando telefone celular), a executiva bem-sucedida custou um pouco a admitir que havia mesmo apitado na curva.

Tentou então o plano B: convencer o interlocutor, por meio das infalíveis técnicas avançadas de negociação, de que aquela situação era inaceitável. Porque, ponderou, dali a uma semana ela iria receber o bônus anual, além de estar fortemente cotada para assumir a posição de presidente do conselho de administração da empresa.

E foi aí que o interlocutor sugeriu:

- Talvez seja melhor você conversar com Pedro, o síndico.


- É? E como é que eu marco uma audiência? Ele tem secretária?


- Não, não. Basta estalar os dedos e ele aparece.



- Assim? (...)


- Pois não?

A executiva bem-sucedida quase desaba da nuvem. À sua frente, imponente, segurando uma chave que mais parecia um martelo, estava o próprio Pedro.

Mas, a executiva havia feito um curso intensivo de approach para situações inesperadas e reagiu rapidinho:

- Bom dia. Muito prazer. Belas sandálias. Eu sou uma executiva bem-sucedida e...

- Executiva... Que palavra estranha. De que século você veio?

- Do 21. O distinto vai me dizer que não conhece o termo 'executiva'?

- Já ouvi falar. Mas não é do meu tempo.

Foi então que a executiva bem-sucedida teve um insight. A máxima autoridade ali no paraíso aparentava ser um zero à esquerda em modernas técnicas de gestão empresarial. Logo, com seu brilhante currículo tecnocrático, a executiva poderia rapidamente assumir uma posição hierárquica, por assim dizer, celestial ali na organização.

- Sabe, meu caro Pedro. Se você me permite, eu gostaria de lhe fazer uma proposta. Basta olhar para esse povo todo aí, só batendo papo e andando a toa, para perceber que aqui no Paraíso há enormes oportunidades para dar um upgrade na produtividade sistêmica.

- É mesmo?

- Pode acreditar, porque tenho PHD em reengenharia. Por exemplo, não vejo ninguém usando crachá. Como é que a gente sabe quem é quem aqui, e quem faz o quê?

- Ah, não sabemos.

- Entendeu o meu ponto? Sem controle, há dispersão. E dispersão gera desmotivação. Com o tempo isto aqui vai acabar virando uma anarquia. Mas nós dois podemos consertar tudo isso rapidinho implementando um simples programa de targets individuais e avaliação de performance.

- Que interessante...

- É claro que, antes de tudo, precisaríamos de uma hierarquização e um organograma funcional, nada que dinâmicas de grupo e avaliações de perfis psicológicos não consigam resolver.

- !!!...???...!!!...???...!!!

- Aí, contrataríamos uma consultoria especializada para nos ajudar a definir as estratégias operacionais e estabeleceríamos algumas metas factíveis de leverage, maximizando, dessa forma, o retorno do investimento do Grande Acionista... Ele existe, certo?

- Sobre todas as coisas.

- Ótimo. O passo seguinte seria partir para um downsizing progressivo, encontrar sinergias high-tech, redigir manuais de procedimento, definir o marketing mix e investir no desenvolvimento de produtos alternativos de alto valor agregado. O mercado telestérico, por exemplo, parece-me extremamente atrativo.

- Incrível!

- É óbvio que, para conseguir tudo isso, nós dois teremos que nomear um board de altíssimo nível. Com um pacote de remuneração atraente, é claro. Coisa assim de salário de seis dígitos e todos os fringe benefits e mordomias de praxe. Porque, agora falando de colega para colega, tenho certeza de que você vai concordar comigo, Pedro. O desafio que temos pela frente vai resultar em um Turnaround radical.
- Impressionante!

- Isso significa que podemos partir para a implementação?

- Não. Significa que você terá um futuro brilhante... se for trabalhar com o nosso concorrente. Porque você acaba de descrever, exatamente, como funciona o Inferno...